Traição Marcante
Uma amiga ligou recomendando um paciente que estava encaminhando: Roberto, cuida bem dele, viu? Ele chegou serio, negro alto, bonito e logo de cara soltou: “Sou homossexual, gosto e gozo. Mas quero mudar”. Fiquei meio reticente com aquela declaração e expliquei a ele como funciona a psicossíntese e que não faz parte do método interferir na vontade expressa do cliente, mas acima de tudo fortalecê-lo para que chegue ao seu objetivo.
Ao longo das sessões ele foi viajando no passado e trouxe lembranças difíceis de serem lidadas. A mãe engravidara de um namorado que desapareceu e nunca mais deu noticia. A avó, para fugir da vergonha de expor uma “filha perdida” levou-a para a fazenda e como castigo sujeitou-a às tarefas mais desagradáveis da lida diária. A criança nasceu e sua mãe continuou ali como empregada, não usufruindo dos direitos de filha.
Ele já estava com cinco anos mais ou menos e sua mãe desempenhava uma das tarefas que menos gostava: tomar conta das crianças enquanto brincavam no quintal da casa. Eram em torno de seis crianças, um deles escondia um objeto e os outros procuravam. Ele estava ganhando todas, descobria sempre antes dos outros e quando chegou sua vez de esconder o objeto, sua mãe chamou para entrarem e acabar a brincadeira. Protesto geral das crianças e ele disse à mãe que só entrariam quando a brincadeira acabasse, antes não. A mãe então, com um sorriso, disse “tudo bem”, chamou uma das menininhas que estavam brincando e, ao ouvido da garota, disse onde o filho tinha escondido a prenda. Atônito ele viu sua mãe, uma mulher, se unir a outra mulher e o trair. Sua mãe o traiu aliada a outra mulher.
O mecanismo de defesa do Ego agiu rápido e, inconscientemente a ele, jogou este fato dolorido bem fundo no inconsciente para lá ficar e nunca mais ser retomado. Alguns minutos depois ele já “esquecera” do episodio e brincava normalmente com seus companheiros.
A reação do superego veio depois, pois sempre em que uma garota estava no meio da brincadeira ele, sem saber por que, se esquivava e saia. Com o tempo ele passou a, sistematicamente, evitar toda brincadeira que tivesse a participação de uma garota que fosse, algo que não chega a ser anormal em meio aos meninos. A adolescência veio e ele descobriu o apoio dos amigos de escola, com eles descobriu o sexo e as relações homossexuais passaram a ser normais entre eles até chegar ao ponto de ele não querer mais saber de mulheres por perto. Morou dois anos com um namorado, evitava contato com garotas, por mais superficial que fosse, ate o dia em que conheceu a que o trouxe ao meu consultório. Passou a sentir por ela um sentimento conflitante que por vezes dava prazer, mas que tantas outras trouxe-lhe náuseas e ânsias de vomito. Não queria mais ficar perto dela, mas quando não a via ficava depressivo. As vezes pensava que era amor, outras sentia asco e esse conflito o estava enlouquecendo. Se pudesse ele ficaria com ela, mas sentia que algo o impedia de fazer o que ele mais queria no momento, toma-la nos braços e cobri-la de beijos.
Quando ele verbalizou a estória e tomou consciência deste episodio da traição de sua mãe, ficou claro que ele transferia esse sentimento, inconscientemente, a todas as mulheres que se aproximavam dele e a repulsa, a reticência que originalmente ele tinha pelo ato de sua mãe, era também transferido a todas elas, mesmo que inocentes desse ato, e com isso ele se afastava, se sentia aliviado com essa fuga e buscava o apoio de outros homens, que na verdade nunca o haviam traído.
Muitas vezes encontrar a causa de um problema é fácil, a dificuldade maior esta em superá-la, resolve-la, arrancá-la do coração e com isso ficar livre de suas conseqüências, na maior parte das vezes, nefastas. A reaproximação com as mulheres deveria se dar, em primeiro lugar com sua mãe. Ele admitiu que não tinha contrato físico com ela, e a tarefa mais difícil veio ao saber que teria que procurá-la, contar a verdade, o que o levou com isto a restabelecer os laços afetivos que se quebraram naquele distante dia da infância.
Foi difícil para ele, mas sentou-se ao lado da mãe e contou tudo, desde a estória da traição até a postura que ele assumira em conseqüência do fato. A revelação levou ambos a um longo e dolorosos choro, pedidos de perdão, abraços, beijos e, pela primeira vez, ele sentiu prazer em abraçar sua mãe, uma mulher.
O principio do trauma havia sido quebrado, destruído. O processo seguinte foi o estabelecimento de uma decisão tomada por ele, sem interferências diretas externas, rumo a uma masculinidade que estava escondida. Menos de dois anos depois do inicio do tratamento ele se casava com minha amiga e, não somente para mim, mas para todos os convidados, davam, desde a cerimônia, uma certeza de que lutariam para preservar e manter aquele amor que os motivou a reagir e enfrentar as dificuldades da mudança radical empreendida.
Roberto Dantas